quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Leão do Nordeste





Senhora dos ares, majestade alada,
empresta-me tuas asas, meu motivo é forte.
Dá-me o teu vôo, amiga emplumada,
cede-me teu olhar; bafeje-me a sorte.

Vejo lá embaixo um calor intenso,
a terra rachada, em feridas mil;
qual costas de escravo: sofrimento imenso,
como racha os lábios no corpo febril.
Então, me pergunto, que lugar é este,
que erma paisagem do Sul ou do Leste,
diz, Senhora Águia, é isto Brasil ?

Vejo um ser humano, arrastando os pés,
miserável adorno em maldito chão.
Magro, derrotado, da sorte o revés,
sem eira nem beira, sem tostão nem pão.
Não leva o direito de esperanças ter,
leva a teimosia de querer viver,
ainda em seu peito bate um coração.

Deixa atrás de si a mulher e os filhos,
a cuia, a farinha, uns feijões, oh! céus!
Leva o desespero; nos olhos o brilho,
move-lhe a missão de salvar os seus.
Que lugar é este, que miséria atroz,
repete-se o escravo; ressuscita o algoz,
que Brasil é este, diga-me oh! Deus !

Senhora dos ares, majestade alada,
empresta-me tuas asas, meu motivo é forte.
Dá-me o teu vôo, amiga emplumada,
cede-me teu olhar; bafeje-me a sorte

Vejo uma cidade, imensa, bonita,
cercada de mar e de montanhas, creia.
Mulher vaidosa; seduz quem a fita,
cantada ao sol e à lua cheia.
Vejo edifícios luxuosos, belos,
piscinas azuis, louros anelos,
e o vinho mais fino a mente incendeia.
Da Grécia, imagino, tal a formosura,
no Monte Olimpo, dos deuses morada.
Vejo deuses lindos, de corpos perfeitos,
das mais lindas deusas, escolhem a amada.
Carros luxuosos, sonhos de verão,
restaurantes chiques, lagosta, salmão;
terra prometida, visão tão sonhada.

Rio de Janeiro ou até dezembro,
do samba enredo, carioca feito.
Alegria e festa; pelo que me lembro,
Cidade imortal, de malandro jeito.
Da mulata linda, curtida ao sol,
do Maracanã, templo-futebol,
tantos monumentos, tudo tão perfeito.

Senhora dos ares, majestade alada,
empresta-me tuas asas, meu motivo é forte.
Dá-me o teu vôo, amiga emplumada,
cede-me teu olhar; bafeje-me a sorte.

Um ônibus cortando o asfalto liso,
larga na estação, um rebanho peco,
maltrapilho, sujo, à dormir no piso,
embaixo à marquise, viaduto ou beco.
O olhar febril, trêmula a mão,
busca o alimento nos restos do chão,
nada de esperanças nesse corpo seco.

Levanta-te Jó, tens de trabalhar!
Não dês chance à morte que espreita os teus.
Não terás enxada, foice ou roçar,
busque Putifar, procure Zaqueu.
Trabalho não encontra, não lhe dão o pão,
ruge, então, no peito a revolução,
já lhe move o fogo, deu-lhe Prometeu.

Já não pede, toma; já não fala, ruge;
já não pensa, age como um furacão.
Sempre de surpresa, lá das sombras surge,
roubando, matando, rugindo o leão.
Já perdeu o vínculo da terra distante,
já não lembra os seus, nem por um instante,
nem é mesmo Jó, é só Lampião.

Senhora dos ares, majestade alada,
empresta-me tuas asas, meu motivo é forte.
Dá-me o teu vôo, amiga emplumada,
cede-me teu olhar; bafeje-me a sorte

Muitos cá trabalham, beijou-lhes a sorte,
já têm um salário - mal dá pra comer.
Mas, dividem o pouco: enviam pro Norte,
Pra aqueles que ainda recusam morrer.
Daqui surgem outros, forjados no não,
e, também, como Jó, viram Lampião,
e muitos mais ainda estão a nascer.

Paulistas de Asgard! Cariocas do Olimpo!
Deuses de Brasília! Detenham os risos!
Quebrai os espelhos, vede mais além,
além do umbigo dos vossos Narcisos!
Que Hércules abra agora os canais!
Que a fome não deixe este povo incapaz!
Quantos Lampiões mais serão precisos ?



(poesia do livro Buscas de Sandoval Barretto - Editora Papel Virtual)

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